Carne em Delírio, Cassandra Rios

Carne em Delírio é daqueles livros que você lê corando de vergonha a cada três sentenças. Ah, mas não cometa o equívoco de achar que estou me referindo ao teor erótico do livro. Na realidade é tudo: os clichês literários que se amontoam, os personagens mal construídos, a essência da história. Tudo é um completo desastre.

Autora de livros que buscam retratar a condição da mulher em sua época, Cassandra Rios é a lésbica mais antilésbica e a feminista mais antifeminista que já tive o desprazer de ler. É dela também As Traças, outra obra que em nada acrescenta a vida de quem for ler. Cassandra Rios é daquele tipo de escritor/escritora que a gente sente que até tem boas intenções, mas o desenvolvimento de suas ideias é insatisfatório. Acontece isso tanto em As Traças como em Carne em Delírio.

Vejam bem um textinho que extraí numa rápida pesquisa no google sobre Carne em Delírio: “Em “Carne em Delírio”, a autora Cassandra Rios aproveita a sua personagem atormentada para mostrar a condição feminina em sua época (anos 50, 60 e 70) e seus dilemas em um mundo machista.”. Depois de ler algo assim, a última coisa que você espera é se deparar com um livro machista. Mas é isso mesmo. Carne em Delírio exala misoginia. A não ser que você ache muito natural que a mulher seja comparável a um cavalo que precisa ser domado. Esta é a tese que o livro defende. O melhor de tudo é a pretensão freudiana alardeada no prefácio e citada, oh, pela personagem central, que, sim, foi à faculdade e estudou Freud.

Mas vamos ao enredo. Cristina é uma jovem rica que, desde a morte do noivo, Marcos, vive atormentada. Mas não é porque o rapaz morreu. É porque ela está grávida. Para esconder-se da sociedade, viaja para uma das estâncias do pai, um banqueiro. Por um infortúnio, perde a criança e não pode mais ter filhos. Retorna à cidade, casa-se com um antigo colega de faculdade, Roberto. Contudo, não consegue esquecer o rapaz que a salvou na estância, Alexandre. Um sujeito rude que se torna obsessão na vida da moça. Arranja, então, um pretexto para retornar à estância. O resto vocês podem imaginar.

Os personagens citados têm pouco ou nenhum desenvolvimento. Estão mais ali para cumprir tabela. Destaque para o pai de Cristina que pouco aparece, apesar de ser estimado e até demais pela filha.

Uma coisa que chama a atenção é que Cristina vive rodeada de homens: o falecido noivo, o pai, o esposo, o amante. Cassandra Rios acerta em alguns pontos como mostrar a vida da moça em função destes homens. Todos os passos dela são calculados tomando-os como referencial. O desfecho da obra, do jeito que foi, reforçou essa idéia, da vida da mulher girando em torno dos interesses de uma sociedade machista.

Dá para entender qual foi a intenção da autora. Cristina renunciando às suas mordomias, divorciando-se do marido (crime social imensurável, na época), para estar ao lado do amante… Tudo isso demonstra uma grande autonomia feminina dentro daquele contexto. A mulher que rompe com as normas sociais para ficar ao lado do homem que a satisfaz, afetiva e sexualmente. Sim, muito bem. Mas isso não anula o tom romântico piegas do livro e, principalmente, a sujeição de Cristina. Ora, a grande mudança na vida da moça foi apenas de eixo. Deixa de depender do marido e do pai para depender (depender MESMO) de um homem que a trata como cavalo.

Não acho que Cassandra Rios mereça o título de “a versão feminina de Nelson Rodrigues”, como andei lendo. Para começar, as crônicas e o teatro rodrigueanos têm verossimilhança. E não se trata de exigir realidade da literatura. Isso seria ingenuidade. Mas não dá para levar a sério uma pessoa que escreve coisas como “Confundiam-se em amplexos exasperados.” e “Sugou-lhe a língua, bebeu-lhe a saliva”. Uma tentativa sofrível de criar descrições de sexo “poéticas” e sensuais, mas que no final terminam sendo pueris, deselegantes e constrangedoras.

15 ideias sobre “Carne em Delírio, Cassandra Rios

    1. Cássia Sousa Autor do post

      Nunca fui atrás pra saber quantos livros ela vendeu, mas não entendi qual seu ponto. Primeiro que vender muito significa apenas que o autor tem uma escrita acessível à maioria das pessoas, não significa que ele seja um bom escritor. Vender muito não é sinônimo de qualidade. Isso é um erro de lógica. Se fosse assim, tudo o que faz sucesso tem qualidade.

      Depois, nunca escrevi um livro. 🙂 E isso não desqualifica minha resenha porque, sabe, se desqualifica a minha, desqualifica as resenhas e comentários de muita gente sobre livros (até o seu… Mas não sei se você tem algo publicado). Cassandra Rios é subliteratura. Não tenho problema com isso, sabe. Há muitos livros que não pertencem à “alta literatura” que são gostosos de ler, instigantes. Cassandra Rios não escreve livros assim. Senti vergonha alheia lendo Carne em Delírio.

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  1. marcio silva de almeida

    Eu li este livro na decada de 1990, ha quase 20 anos. E uma pena que alguns de seus liuvros nunca foram reeditados. Cassandra tinha de tudo pra ser o “Marquês de Sade Tupiniquim” ou do tipo “Sexologa da Literatura
    Brasiliera”

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  2. Nell Silva

    Quem não consegue ouvir, não sabe ler. Não falo de surdos ou de iletrados, falo de gente que expõe num espaço aberto sua opinião e não sabe levar avante uma discussão saudável sobre o que escreveu e defende. Arvorar-se de culta e julgar alguém carece de humildade para ouvir outras opiniões e inteligência e respeito para aplicar replicas e tréplicas. Desculpe, mas nem Nelson Rodrigues concordaria com você e preferiria não ser colocado nessa comparação.Não defendo Cassandra, defendo a capacidade intelectual de seus leitores. Concordo quando diz que vender muito não seja sinal de qualidade literária. Mas creio que, quem tanto vendeu e todos os que leram mereciam não somente a SUA opinião, mas uma discussão mais respeitosa e inteligente.
    Melhor sorte a todos da próxima vez.

    Nell Silva

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    1. Cássia Sousa Autor do post

      Desculpe, não entendo onde me “arvorei de culta” e ou “fui incapaz de ouvir opiniões”. Todos os comentários feitos sobre esta resenha foram aceitos e respondi a ambos com argumentos válidos. Não ataquei, nem ofendi ninguém em particular. O que posso ter falado no texto da minha resenha e que você interpretou erroneamente é sobre o leitor ideal de Cassandra, aquele que ela constrói, propõe em sua escrita. Não quem lê. Não sou onisciente pra saber quem lê a obra de Cassandra e tampouco fiz um estudo pra determinar, na prática, quem é o seu leitor.

      Quanto a Nelson Rodrigues concordar ou discordar de mim, antes ele teria de concordar ou discordar de quem o comparou à Cassandra Rios, que não fui eu. Simplesmente li um texto onde ela era referida como a versão feminina dele.

      Já li várias obras dele. E li duas de Cassandra Rios. Não sou especialista em literatura, mas os dois abordam temáticas próximas (nem semelhantes são) de formas muito diferentes. Até mesmo o gênero ao qual os dois escritores se dedicavam eram completamente distintos. Enquanto que Nelson escrevia mais crônicas e peças, Cassandra, romances. E as diferenças não param por aí: há diferença de tom (Nelson é irônico, Cassilda é dramática), na forma de construção dos personagens e muitas outras que não faz sentido mencionar aqui. Assim como não faz sentido conjeturar se ele concordaria ou não comigo. Acho pretensão tua tentar determinar o que se passa na cabeça de um escritor e ainda mais um escritor que já morreu. Ao escrever minhas resenhas, essa é uma coisa que jamais passa por minha cabeça. É como discutir o sexo dos anjos. O que me interessa é o texto que ele escreveu. Suas intenções são apenas dele e eu seria bem ingênua se procurasse determiná-las nos textos que escrevo.

      E mais uma vez eu pergunto onde não dei espaço pra opinião alheia. Estou aberta a qualquer discussão. Infelizmente, apenas duas pessoas postaram aqui (à exceção de você) e nunca treplicaram minhas respostas. E uma delas foi desrespeitosa comigo (saca? Não o contrário) ao utilizar uma falácia de apelo à autoridade.

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      1. Nell Silva

        Cassia, percebe como a discussão mais aprofundada, réplica, tréplicas em um nível de sociabilização e mutuo aprendizado leva-nos a melhores caminhos do que respostas como :
        “Acho que ela tá mais pra escritora de ficção de terceira.”
        Li seu texto com atenção. Concordei em alguns pontos. Discordei de outros.
        “Ser diferente é normal,” rsrs
        Meu comentário acima baseou-se em uma certa indignação que senti com as duas respostas que li aos comentários anteriores.
        Li Muros Altos de Cassandra aos 16 anos, em pleno anos 70 e ditadura. Hormônios todos aflorados mas reprimidos, questões sobre sexos todas sem resposta e 1000 pontos de ? na minha cabeça. O livro pelo alto conteúdo erótico (considere qualquer um de bom gosto ou não, bem escrito ou não) liberou os hormônios todos, descobri meu corpo e ,de certa forma , me abriu o olho para um submundo dos mais velhos que eu não tinha acesso : o sexo e suas complexidades, mentiras, opressões, repressões. Enxerguei pela primeira vez que aquela prisão onde eu pensava me encontrar não era minha , mas de todas as mulheres.
        Ha quem tire água de pedra? pois é… tirei tudo isso de um livro de Cassandra.
        Claro que, depois vieram outras literaturas como A revolução do Bichos, Fazendo Moderna de Chico Buarque e eu descobri mais gente “presa” em outros mundos e realidades. Livro é isso. Uma frase entre 500 páginas muda sua forma de pensar e ver o mundo. Por isso os amo e respeito, por jamais ter sido capaz de passar de medíocres crônicas e poemas, todos os autores. principalmente os que vendem muito, É de se admirar fazer muita gente ler o que se escreve.
        Li Nelson Rodrigues, também. A bem da verdade não sou sua maior fã e deixo claro, tão pouco sou a maior fã de Cassandra. Mas respeito os que ambos trouxeram de debaixo dos tapetes das familias. Se, talvez ,apenas talvez, Cassandra tenha menos qualidade que Nelson, respeito profundamente uma mulher que tenha sido capaz que afrontar de tal forma sociedade e políticos. Mulher no Brasil, à época dela, mal deveria saber ler e escrever, quanto mais escrever em livros que mulheres fingiam prazer, que algumas gostam de ser dominadas, que outras preferem mulheres, outras ainda a vida dupla.
        Se seus textos não têm apuro literário, tem a intenção e a coragem e acho que por esse lado ela foi extremamente injustiçada no Brasil.
        Afinal, por que só eles entendem de cultura?
        Voltando aos fãs de Cassandra, é pedir muito aos seus aficionados seguidores que não se ofendam quando você escreve ” Cassandra Rios é a lésbica mais antilésbica e a feminista mais antifeminista que já tive o desprazer de ler”.É opinativo, entendo, mas contém julgamento e isso inflama. o que não é mal também. Despertar opiniões contrárias é ótimo em qualquer tipo de assunto, apenas é preciso saber ouvir o que vem de volta.
        Concordo em parte que talvez tenha errado em escrever ” Desculpe, mas nem Nelson Rodrigues concordaria com você e preferiria não ser colocado nessa comparação”. Não menos errou você ao colocar “Senti vergonha alheia lendo Carne em Delírio.” Peço que não carregue vergonha por mim, até porque não li o citado livro.
        Mas é isso, Cassia, fizemos, na minha opinião e ,se não concorda, tem todo o direito à tréplica, uma ótima, proveitosa, inteligente e educada discussão sobre sua resenha.Aliás, bem escrita, da qual posso discordar, mas não posso tirar o mérito.

        Nell Silva

  3. Cássia Sousa Autor do post

    Então, escrevo mais pra concordar com você e dizer algumas coisinhas mais.

    Eu entendo o valor contextual da obra de Cassandra Rios. Não mencionei isso porque, sei lá, pra mim é ponto morto. Penso que ela tenha mais valor sociológico do que literário. E de fato ela toca em questões pertinentes, mas acho que de forma ainda muito acrítica ou sem dar aquele caráter multidimensional aos personagens ou às situações que coloca.

    Você perguntou “por que só eles entendem de cultura?”. Me pareceu que está se referindo a homens. Talvez meu texto e meus comentários deem essa impressão de que estou falando de uma questão de gênero porque apenas Nelson Rodrigues é comparado a ela. Mas Carol, um thriller psicológico, é um livro que no meu entender trata dessa questão da sexualidade e opressão feminina de forma muito eficaz. Anaïs Nin é outra escritora que mostra diversas nuances da sexualidade feminina. E embora nem Highsmith e nem Anaïs sejam escritoras brasileiras, penso que estão tratando de questões com as quais se não todas, mas muitas de nós, mulheres, se identificariam.

    Você também falou da sua experiência com Cassandra Rios. Acho muito válida. Se você der uma olhada no meu blog vai perceber que não leio apenas um tipo de livro. Não tenho essa percepção instrumental dos livros, acho que dependendo do contexto temporal, emocional, de conteúdo, etc. cada um é capaz de interagir de forma bem diversa com um livro. Acho que o mesmo valor que Cassandra teve pra você, O Anatomista e Fanny Hill tiveram quando eu tinha mais ou menos sua idade. xD

    Quando falo vergonha alheia, não me refiro necessariamente aos leitores, mas a própria Cassandra que escreveu o que escreveu seriamente. Quis dizer que sinto vergonha por ela. Enfim, só pra deixar claro minha posição: eu sou fã de Nelson Rodrigues. Acho Vestido de Noiva uma peça tão instigante, provocante e criativa quanto O Balcão, de Jean Genet. Pra mim, ambas duas das melhores peças que já li. Sem mencionar as crônicas… Acho que ele foi quem mais soube falar da classe média brasileira.

    Enfim, é isso. Gostei de discutir com você. 🙂

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    1. Nell Silva

      Cassia, tb foi ótimo discutir com você. Duas opiniões que divergem, mas que podem convergir em outra, colidir mais adiante, sei lá… Sei que qqr discussão é melhor que o marasmo .. Essa é a graça de interagir, seja ao vivo, seja on line.
      Ah!esquecemos de colocar nessa miscelânlia cultural Hilda Hilst.
      Fica pra uma próxima “batalha” rsrs
      Quando tiver mais tempo, já que férias acabam próxima semana, procurarei ler mais seu Blog.

      bjin e até aproxima
      Nell

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  4. Fernanda Machado

    Oi Cássia, as vezes que li Cassandra Rios, achei também uma literatura piegas. Sempre quis lê-la com respeito pela questão que você colocou, que ela tem mais valor sociológico que literário. Porém havia momentos que eu me perguntava, por que estou lendo isso? Por que sou lésbica? Mesmo assim acho que ela não deve ser esquecida e nem colocada de lado, afinal os ingleses adoram sua Agatha Christie que eu chamo ambas literatura de entretenimento e por isso valida…

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    1. Cássia Sousa Autor do post

      Mas eu pensei que tivesse ficado claro na minha resenha que não tenho problemas com literatura de entretenimento. Quando escreve um livro, um escritor tem uma proposta. Agatha Christie me entretém, seja por sua engenhosidade, seja por seu humor ácido, seja por seus personagens típicos. Eu penso que os ingleses que a estimam tanto não a leem comparando-a a Chaucer, John Donne ou Virginia Woolf… xD

      O problema que vejo em Cassandra Rios é que ela fracassa em sua proposta. Não acho os livros dela (pelo menos os dois que li) “feministas” ou pró-lésbicas. Concordamos quanto ao aspecto sociológico da coisa. O que não gosto é o tom narrativo dela. Tome-se como comparativo Carol (Patricia Highsmith) e As Traças que são livros que estão tratando praticamente da mesma temática, levando-se em consideração que a personagem central de Carol ainda estudou a vida inteira num colégio religioso e, por extensão, repressor. Highsmith adentra em sua psicologia de forma sutil, desvendando a personagem para nós, leitores, ao mesmo tempo em que a própria Therese desvenda a si mesma. Acho genial um trecho que mostra a angústia e vergonha da personagem diante de Carol por conta de um ferimento na perna e o curativo “feio”. Sem falar que para a época em que foi escrito, Carol foge de muitos clichês e generalizações como a dicotomia ativa/passiva na relação entre mulheres, coisa que é colocada de forma muito estereotipada em As Traças.

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  5. Patrícia Soares Araújo

    Estou fazendo uma pesquisa e preciso de uma carta q Cassandra escreveu em Nicoletta Ninfeta, tinha o livro mais sumiu… A carta começa assim: Todos os sentimentos passaram por mim, da raiva á mais profunda tristeza, como sempre a razão se impôs e venceu estendo á mão á palmatória e retiro-me. Não nego que carrego comigo o peso do mais arrasador fracasso(…) Preciso do resto da carta, por favor enviem uma resposta p/meu email: Psoaresarajo@gmail.com, Grata

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    1. Cássia Sousa Autor do post

      Não tenho essa carta, Patrícia. Se alguma das meninas que comentaram aqui tiverem, não editei teu comentário com o e-mail… enfim. Boa sorte com sua pesquisa.

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  6. neto

    Li a volupia do pecado nos anos 80, talvez aos 12 ou 14 anos. Foi marcante. Descobri como a literatura podia despertar sentimentos avassaladores. Obrigado cassandra!!!!

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